Zoroastro
De: Porto 7/8/2007 11:21:01 PM | Como pôr macacos a ler Poesia
O título também poderia ser "Mais um ataque bárbaro ao Netdecking", essa prática que mina o espírito livre e destrói a originalidade. Qualquer um pode ser macaquinho de imitação, mas pegar numa ideia, trabalhá-la e tentar fazer dela algo de belo, aí reside a singularidade do ser humano. E também a causa maior da sua supremacia sobre os animais que pastam esta terra.
Quantas pessoas aqui já viram users a apresentar decklists criadas pelos próprios, a solicitar ajuda para afinarem os seus decks, apenas para serem gozados pelas mesmas pessoas a quem pediam ajuda? Ou então a serem brindados sempre com as mesmas respostas acéfalas de "joga com esta lista", lista essa que é invariavelmente um Tier 1, conhecido de todos?
Não há criação de nada de novo se a cada ideia inovadora, apenas conseguimos responder "Não vale nada" ou "Faz antes isto que já existe". Se todos pensassem deste modo, ainda hoje veríamos televisão a preto e branco.
Qual é a criança que sente a falta de uma bicicleta antes de aprender a andar? Ou de um livro antes de saber ler? Mas são coisas de valor. E que depois de as termos, não toleramos perdê-las.
A sensação de ganhar com um rogue meu a um Netdeck é indescritível. Sugiro-vos que tentem. Sentirão o prazer de contra todas as probabilidades, e graças ao vosso engenho e persistência, ganharem um duelo que parecia perdido à partida.
Já o ganhar com netdeck não dá prazer nenhum. Porque a expectativa era a de que iriam ganhar, apenas esse resultado vos irá satisfazer. Se ganharem, não terão feito mais que a vossa obrigação. Se perderem, serão como Golias, levado à certa pelo pequeno David. E irão para casa, carregados de amargura e azia, com o rabo entre as pernas, já a pensar quais as cartas de €15 para cima que vão comprar ou trocar, para assegurarem a vingança e recuperarem a virilidade perdida.
Talvez até mudem de deck completamente. Isto desde que o tenham visto previamente na net, claro está. Nada de loucuras de pensar pela própria cabeça... Há gente neste mundo (no gravy train) paga para pensar por todos nós.
Quanto a mim, (Zoroastro, Casual Rogue Deck Builder Extraordinaire) posso tropeçar quando passeio por trilhos ainda não percorridos, posso perder-me, posso até dar com os queixos no chão, que levantar-me-ei sempre confiante na minha capacidade de superar dificuldades e encontar o meu rumo de regresso. Mas ai de vós, que desabituados a usar neurónios, estão sempre à espera que vos digam o que fazer e o que pensar e o que jogar e como jogar. Basta um obstáculo e ficam perdidos, que nem baratas tontas. É como um Boros a quem alguém apresentou um Sulfur Elemental. E continuam à espera da resposta. E passado tanto tempo ela ainda não veio.
Quantas pessoas há aqui, que tendo um Boros completo há um ano atrás, continuam a jogar com ele, se bem que afinado por vós ao novo metagame? E quantos de vós tinham o mesmo deck, mas decidiram mudar para outro deck completamente diferente (tipo, Dragonstorm ou Dralnu), sem absolutamente cartas nenhumas em comum?
Aos que responderam afirmativamente à segunda questão, reparem no seguinte. Os vossos adversários fizeram-vos uma pergunta (Tens resposta para o Sulfur?) e vocês não encontraram uma resposta adequada. Isto é válido para qualquer deck, não só para Boros.
Volta e meia, deixo na secção de Dúvidas uma pergunta. Serve não só para confirmar uma possibilidade, mas também para fazer um convite a todos, a tentarem fazer um deck à volta de uma combo ou sinergia. Gostaria que o pessoal frequentasse mais aquela secção porque às vezes encontram-se ideias engraçadas com as quais se pode brincar. Não estou a dizer que se pode aproveitar tudo, especialmente se o vosso interesse é unicamente a competição. Mas se for o jogar com os amigos na desportiva, são lá apresentados alguns desafios que, se se derem ao trabalho de os explorar, podem dar fundecks fixes.
E ao criarem decks e relacionarem cartas, estarão a adquirir espírito de auto-crítica, habilidade de gerir recursos escassos, flexibilidade, e tolerância ao erro e à diferença.
E talvez deste modo, não haja o bota-abaixismo cínico que grassa neste fórum e que surge em força sempre que aparece uma coisa diferente. Nem a declamação repetida das mesmas ideias estafadas de sempre, qual ladaínha de beatas, sempre no corte e cose, a dizer mal das vizinhas, só porque vestem diferente.
Pilotar um Netdeck não é necessariamente fácil. É preciso saber bem o que faz cada carta e quais as ameaças mais relevantes e as nossas contra-medidas defensivas. Por isso, tem mérito quem o sabe jogar bem. No entanto, é tudo uma questão de treino. O Gervásio também aprendeu a separar o lixo para ser reciclado. No entanto, ainda é um macaco. Bem treinado, é certo, mas inquestionavelmente um macaco.
Por isso, deixem-se lá de Netdecks e usem as células cinzentas que é para pensar que elas lá estão.
Sejam felizes, façam o amor, joguem Magic. Por esta ordem. Se sobrar tempo, leiam. Qualquer coisa. Podem começar por este poema aqui, escrito por José Régio na primeira metade do século XX, certamente a pensar em netdecking.
Cântico Negro
"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
--- Sei que não vou por aí.
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